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CAI O QUEIXO

Bom dia , Matutina !



         Para começar, uma nobre verdade: não conheço a Neusa. Pelo menos, não pessoalmente. Não se trata de uma ex-colega de faculdade, de alguém que virou celebridade de um minuto através de milhões de likes, eu a encontrei no perfil de um amigo e ela acabou se tornando também minha “amiga”. Fora isso, nunca a vi mais magra, a não ser nas selfies do Facebook. Mas como final de ano é uma época para mensagens altruísticas e não coisas do tipo “vejam minha ceia de Natal, gente como estou magra! Este é o meu bebê”, escolhi a Neusa como leitmotiv desta crônica, pois ela fala com o coração repleto de sinceridade.
            A considerar por suas postagens, a rotina da Neusa começa bem cedo. Com os raios da manhã brilhando ao fundo da serra, eis sua selfie matinal: “Bom dia, Matutina!”. Sua cara de pera de vez e seus olhos vivos aparecem então na foto, muitas vezes com seus instrumentos de trabalho ao fundo, pois a Neusa é gari na cidadezinha de Matutina, a 500 km de Belo Horizonte.            De forma simples e direta, faz a crônica da cidade, que conhece como ninguém. O tumulto na câmara municipal, o escândalo dos vereadores que aumentaram o próprio salário, a falta d’água, a chuva de granizo, a previsão do tempo para o dia, tudo compacto, sem firulas, a Neusa é mais eficiente do que o instituto de meteorologia. Basta olhar sua foto para entender as tendências das nuvens e dos ventos e até mesmo da economia. Será que o google já sabe disso?
            É reconfortante vê-la reclamar um pouco mais de cuidado para com o espaço público de parte dos cidadãos, afetados pelo descaso que reina em toda parte. Eu os chamaria de porcalhões incorrigíveis, mas a Neusa lhes dá vênia, tem esperança que ainda se emendarão, recorre ao bom e velho exemplo, faz o que pode.
            Ela tem uma nobre percepção de que o bem-estar individual envolve toda a comunidade, assim como o respeito ao meio ambiente. E, sobretudo, sabe que agir é mais importante do que falar. Os cães abandonados, os gatos perdidos, as vacas desgarradas, coisas que não são da conta de ninguém, viram objetos de preocupação da Neusa. Se uma cadela dá cria na rodoviária, lá vai a Neusa cuidar da mamãe, garantir que esteja se alimentando bem e produzindo suficiente leite para a ninhada. E vai além: presta-se a educar os vigias e os passageiros no respeito para com nossos irmãos de quatro patas. Depois, procura famílias adotivas par os filhotes, através de fotos postadas em sua linha do tempo.  Só descansa quando o último barrigudinho tiver partido em direção a um lar feliz.  
            Tomara que a Neusa não fique popular demais e lhe venha à cabeça a ideia de se candidatar a um cargo político, vereadora, por exemplo. Ela poderia começar defendendo a causa dos bichos e terminar fazendo o jogo dos humanos. Não dê assunto a esses cachorros, Neusa, os animais têm muito a nos ensinar! E você também. 

©
Abrão Brito Lacerda

30 12 17

Comentários

  1. Que bom , elogios nos faz muito bem, Parabéns!!!

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  2. Que bela e merecida homenagem a Neusa, pq ela é realmente tudo isso, sem tirar nem por uma palavra!
    Fiquei feliz ao ver o post, pq talvez, quase certo, q poucos na cidade vejam o valor dela, enquanto cidadã!
    Obrigada pela belíssima crônica!

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  3. Muito legal! A forma de exposição,assim como também o enredo de toda a vida, valorizando a pessoa e colocando pontos críticos a ser corrigido no município.
    Quando percebi já havia feito a leitura, já querendo mais .

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  4. Bela homenagem, bem merecida em seus mínimos detalhes, tem todo o meu respeito e admiração, como pessoa e profissional.

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