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A MEIO-PAU


 
(Imagem: www.ghiraldelli.pro.br)
        A história guarda surpresas. Às vezes vamos pra frente, às vezes damos pra trás. Tempos cheios de entusiasmo e fé são sucedidos por outros, pessimistas e inflacionados. Uma geração pretende mudar o mundo, a seguinte ressuscita velhos chavões, alguém já disse que a serpente morde a própria cauda quando se vê em um círculo de fogo.

        Quem já viu de tudo neste mundo, já viu até comunista. É uma espécie rara, atualmente em extinção nos assim chamados países de governo popular, pois fugiram todos pro capitalismo, que pretendem derrubar um dia para, em seu lugar, erguerem o saudosismo.
        Algumas breves do último congresso do Partido Comunista:
        08:00 – Conjuntura interna
        10:00 – Conjuntura externa
        12:00 – Almoço: Strogonoff e salada russa
        14:00 – A conjuntura interna e o Capitalismo
        16:00 – A conjuntura externa e o Capitalismo.
        Dizem que foi a moda que inventou as tendências; na verdade, foi a esquerda: Convergência, Divergência, Aderência, Incontinência, exploravam ao máximo as possibilidades da língua portuguesa. Não tivesse eu flertado com essa parte do nosso léxico, não teria nada para contar, mas adianto que a Convergência Socialista tinha as garotas mais gostosas do movimento estudantil e estiveram muito perto da verdadeira revolução. Para que não digam que estou legislando em causa própria, passo a bola ao Chicão Cucuruto e seus amigos rapaces, os temíveis, os abomináveis CCSC ou Comando de Cooptação Sexual de Comunistas.
        Estávamos na pré-história do Brasil, período compreendido entre o fim do governo militar e o início do governo silvícola atual. Partidos pipocavam feito bomba de São João, era preciso, literalmente, devorar os adversários, poupando as adversárias para a sobremesa. Foi nisso que o CCSC desenvolveu, digamos, hábitos de gourmet, apreciando as mais delicadas iguarias da terra, fusão de raças e cores, perfumes e sabores.
        Lançavam mão de estratégias iconoclastas:
        - Na página cinco do Dezoito Brumário, Marx afirma que os fatos, não nossas paixões, devem conduzir nossa ação.
        - Você leu o Dezoito Brumário? – perguntava a gata, embasbacada.
        - Claro! Venha, vou te mostrar.
        Às vezes era preciso dar prova de maior erudição:
        - O Dezoito Brumário não é a verdadeira obra de Marx – contestava alguma metida.
        - Mas no Manifesto Comunista...
        - Não me venha com essa de Manifesto Comunista! Nessa época Marx ainda pensava como um burguês.
        - Será preciso então analisarmos o capítulo III de O Capital...
        Quase ninguém conhecia o tomo III do Capital. Essa era uma prova cabal de comprometimento com a revolução, a gata não tinha saída:
        - Gostaria que você me mostrasse a passagem...

(Imagem: www.ofelino.blogspot.com)

        E assim rodaram pelo país, como missionários da nova esquerda, entrando e saindo sem parar. E foram parar em Guanambi, uma cidade do sertão da Bahia, mais conhecida pelas manchetes policiais. Não avisaram a eles (dizem que foi vingança) que aquela gente tinha sangue de Lampião, as moças manuseavam um machete tão bem quanto um alicate de unha. O comando central tinha diagnosticado nas paragens um grupo crescente de simpatizantes do partidão (o PC do B), do partidinho (o PCB) e filiais. Seguiram os pretensiosos do CCSC de ônibus pela Rio-Bahia com a incumbência de desbancar o strogonoff e a salada russa e em seu lugar implantar a farofa e o torresminho com mandioca.
        Agenda do 1º Encontro da Esquerda Revolucionária do Sertão da Bahia:
        08:00 – Conjuntura interna
        10:00 – Conjuntura externa
        12:00 – Almoço: Picadinho Burguês com tomate vermelho
        TARDE – Livre para cooptação.
        Instalaram-se os salafrários no hotel mais próximo do centro de convenções, de onde controlavam o entra e sai dos militantes, ou melhor, das militantes, seu único e exclusivo alvo. Imaginem pagar uma cambada dessas para ir encher a pança com a comidinha apimentada do sertão. O cínico do Picles, nome de guerra de um dos companheiros do Chicão, confessou: “As garotas não tinham nada de operárias, eram lisas e saudáveis, pele de canela, cheiro de cravo.”
        Tentaram as velhas táticas:
        - Conforme Marx afirma no Dezoito Brumário...
        - Que Dezoito Brumário, que nada, a gente aqui é de ação!
        Quem só viu uma baiana rebolando atrás de um trio elétrico não imagina do que ela é capaz.
        - Companheira, a “nova esquerda” que está surgindo...
        - Ó xente, coisinha de Minas. Você não entende nada mesmo de revolução. Qual é o número do seu sapato?
        - Quarenta e quatro bico largo.
        - Serve!


        Foram depenados, sugados, amassados feito panos de chão. No dia seguinte, fechamento do congresso, nada      da companheirada de Belo Horizonte chegar para falar da “nova esquerda”. Os convivas aguardavam ansiosos a preleção sobre o Tomo III do Capital, mas o que viram foram três espectros de olhos fundos, como se estivessem usando maquiagem de Frankstein.
        Na foto de encerramento, o Chicão não aguentou nem mesmo levantar o pau da bandeira, que ficou apontada para o chão, com o dizer: “Avante!”. Mas conseguiram converter boa parte da banda feminina aos novos ideais.
©
Abrão Brito Lacerda
24 02 15


        

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