Pular para o conteúdo principal

Postagens

RECEITA DE BOLO PARA SER FELIZ

           Muita gente tem um slogan que a orienta na vida: “hei de vencer”, “minha casa, minha vida”, “presente de Deus”. O meu é mais singelo e apela simultaneamente a nossos instintos contraditórios de autopreservação e prazer. Dou vênia aos que rirão e aos que não, aos céticos e aos diabéticos, aos infelizes e aos que têm alergia a trigo, enfim, confesso: quem me ama, faz bolo para mim.             Por falta de amante e até mesmo por conveniência, comecei a fazer bolos, pois não tenho saco para ir à padaria todo dia, biscoitos de caixinha dão azia e outros petiscos comprados para o café da manhã amanhecem duros no dia seguinte (aproveito para contar o caso do pão de queijo traído: era uma vez um pão de queijo que virava um pau quando esfriava; um dia ele se derreteu por uma maria mole borrachenta e frígida, virou polvilho de novo e ela o trocou por um brioche).             Bolo de chocolate, bolo de milho, bolo de banana, bolo de goiaba (meu maior fracasso), bolo de aipim, bo
Postagens recentes

SEU NOME É GAL

                Em julho de 1979, quando era estudante de técnicas agrícolas em Uruçuca, Bahia, fui participar de um treinamento no município vizinho de Itajuípe. Nada de excepcional em princípio, a não ser a carona que tinha conseguido com um dos instrutores. Enquanto olhava pela janela do carro o desfile monótono das matas de cacau, com seus variados tons de verde, um fato marcante aconteceu: ele pôs para tocar uma fita cassete do último álbum de Gal Costa, recém-lançado.   A cantora era a favorita da minha geração, seus sucessos estavam na boca de todos, mas eu não tinha a dimensão de sua grandeza como artista, ouvia-a simplesmente quando tocava nas rádios.             Até aquele dia, em que pude ouvir do início ao fim o álbum Gal Tropical, com direito a reprise. Enquanto as canções se sucediam, a paisagem mudava à minha volta, ganhava uma inesperada beleza: “Samba rasgado”, a canção de abertura, mostra Gal em plena forma, com seu mix de potência e controle. Depois vem “Noites

IMPERECÍVEL – FLÁVIA FRAZÃO

                Até que enfim resolvi ler o livro de Flávia Frazão. Se souber disso, ela me mata. Minha única esperança é tornar públicas essas impressões de leitura, de modo a conquistar seu afeto e seu perdão.             Porque a alma em ebulição da autora se manifesta a cada poema e ela pode muito bem nos lançar em correntezas e dúvidas das quais não sairemos ilesos. Seu trabuco 38 (na época de lançamento do livro, em 2019 – agora ela vai me matar de vez) parece estar sempre fumegante:   “mãos ao alto senão atiro   38 é fatal e certeiro meu bem   o calibre é meu e de mais ninguém”             [Trinta e oito]             Com sorte, ela terá péssima pontaria, como a maioria dos poetas, que miram no nosso peito e acertam o próprio pé.             Não vou ser discreto, porque ela não é. É muito bom vê-la em enlace com o Manuel (Bandeira), que era casto e constante e nos deixou aquele monte de poemas clássicos que salvam do esquecimento os livros didáticos de

SOL NO CORAÇÃO

         Kikuko tocando Koto (harpa japonesa), em 1973, ano de sua partida para o Brasil.             O contraste entre luz e sombra, fundamental nas artes plásticas, oferece um notável meio de observação sobre a natureza da existência. Sabe-se que a luz é mais clara e a sombra é mais escura na proximidade do ponto em que se tocam no ângulo. Posicionadas lado a lado, uma ajuda a definir a outra, como seu contrário e seu complemento.             Na filosofia budista, a luz (sol) e a escuridão (noite) são frequentemente usadas como metáforas dos estados fundamentais do ser. Assim, o termo “escuridão fundamental” designa o oposto da iluminação ou sabedoria búdica). Contrárias mas não excludentes, ao contrário, nerentes e inseparáveis, o que equivale dizer que não existe sabedoria sem ignorância e vice-versa. A prática budista visa, de um ponto de vista prático, ativar os fatores que favorecem a sabedoria e  conduzem ao sucesso (realização dos objetivos) e à felicidade. O sujeito pode

OS PELOTUDOS

  Página de "Pelotudos" de Mario Kostzer.         Pelotudos é uma gíria de Buenos Aires cujo sentido depende do contexto, indo do boçal ao arrogante, passando pelo inconsequente, folgado e aproveitador. Carrega uma ponta de juízo e outra de humor e galhardia, como costuma acontecer com as invenções do vocabulário popular. Sendo assim, traduz uma síntese cultural que aproxima o crítico do seu alvo.             A cidade está cheia deles: nas ruas, nos bares, nos táxis, até nas livrarias que pululam na Avenida Corrientes, perto do obelisco da Nove de Julho.             Tomei conhecimento do termo ao frequentar um café da Praça Lavalle, (mais conhecida como Tribunales pelos locais), logo atrás do Teatro Colón. Emoldurada por uma linda arquitetura que combina o clássico e o moderno, a praça tem no centro algumas árvores imensas, que servem de abrigo a casais apaixonados e leitores empedernidos. Quem está sozinho, lê, seja ao ar livre, seja em um dos inúmeros cafés daquela zo

1959

                               Entre os números cabalísticos não consta o 59.          Seria ele um número qualquer, como 1016 e 21, desses que se habilitam a saltar de bungee jump ou andar de monociclo na corda bamba, só para sair do ostracismo?          Muitas evidências indicam que não. Cinquenta e nove é um coroa enxuto, com muitas histórias pra contar. Meu pai, que não lia jornais e mal ouvia rádio, tinha uma estranha fixação por esse ano, ao qual reputava tudo de grave e importante que conhecia (ou supunha conhecer). Falava da grande enchente de 59, do fim da guerra (não sei a que guerra ele se referia), da copa de 59 (meu pai era totalmente ignorante em matéria de futebol e só poderia falar abobrinhas a respeito). Mais tarde eu tentei corrigi-lo, afirmando que a copa tinha sido no ano anterior. Foi como convencer um camelo a passar pelo buraco de uma agulha.             A calça comprida já tinha se tornado item comum no guarda-roupa feminino e atraía olhares nas capas

SEU MONTEIRO

                                                          Os motoristas de táxi desta cidade são todos aposentados de outras profissões. João Paulo é ex-bancário, Brás é ex-mecânico e Seu Monteiro foi operador de máquinas em uma usina siderúrgica, demitido em período de vacas magras.   Há mais de vinte anos dedica-se ao volante, profissão que abraçou como uma segunda natureza. Percorre as ruas da cidade onde nasceu várias vezes ao dia, conhece todos os caminhos, sinais e inclinações do sol. Funde-se à paisagem urbana como um auto móvel, está na praça, na estação, na rodoviária.             Além de recolher o passageiro em casa ou no trabalho na hora em que quiser. De manhã cedinho ou tarde da noite. Seu Monteiro é humilde, paciente e prestativo.             Em cada passageiro, sobretudo os fiéis, inscreve algumas linhas de sua vida. Seja na forma silenciosa ou na forma do diálogo, cheio de maneirismos e expressões populares:             - “Tão demorano a cunsertar essa rua... D